sábado, 12 de abril de 2008

Hakuna-Matata: O Direito Administrativo ou a Lei da Selva


Hakuna-Matata: O Direito Administrativo ou a Lei da Selva


Durante as férias da páscoa tive a oportunidade de ir fazer uns safaris no continente africano: uma experiência inesquecível! Lá, tive a oportunidade de ver e analisar uma diferente forma de viver. Para certos animais como os leões, elefantes ou hipopótamos, a vida é repleta de descanço e tranquilidade, não existindo qualquer tipo de regras ou imposições (apenas um interessantíssimo respeito pela hierarquia e pela supremacia do irmão mais velho, nos grupos de leões): sintetizando, os animais fazem o que querem e o que bem entendem.

Qual o meu espanto quando, voltado a Portugal, noto que algo de semelhante se verifica no nosso país. Vários políticos são, e têm sido, contratados para trabalharem para grandes empresas privadas portuguesas, situação que denuncia, segundo alguns, a falta de legislação para estas situações: por enquanto faz-se o que se quer sem olhar aos problemas jurídicos e éticos que podem causar. Mas sejamos honestos: não é algo que aconteça únicamente no nosso país, acontece em todo o mundo. Por outro lado, não estamos, nem queremos, por este meio, denunciar o quer que seja: apenas pretendemos analisar os problemas administrativos que este tipo de situações pode suscitar.

Como tal, devemos, antes de mais, salientar o porquê destas contratações. Por uma lado, os ex-políticos e ex-ministros são, de facto, na maior parte dos casos, indivíduos com grande conhecimento em determinados sectores, conhecem bem as leis que os regulam, movimentam-se bem, têm muitos e importantes contactos, daí que sejam muitas vezes chamados para cargos em empresas, públicas ou privadas, que lidem, no seu dia-a-dia com sectores onde os próprios políticos tenham já exercido a sua actividade. São sem dúvida das pessoas mais indicadas para esses cargos, já que são pessoas que dominam largamente o conhecimento do(s) sector(es) em causa. Por outro lado, as empresas são livres de contratar quem bem entenderem, e sobretudo, são livres de contratar quem acharem que está mais qualificado para o cargo. Até este ponto não parece existir qualquer problema.

Porém, por se tratar de agentes políticos, com grandes poderes e com muitos meios a seu cargo, é compreensível que surjam suspeitas sobre as suas actuações, suspeitas essas que apenas são sustentáveis por se estar a lidar com um problema que envolve dinheiros públicos e com medidas políticas susceptíveis de influenciar determinantemente a forma como vivemos. Assim, surjem vários e interessantes problemas jurídicos susceptíveis de serem analisados sob o olhar do Direito Administrativo, e em especial, sob a mira dos Princípios Constitucionais aplicáveis ao Direito Administrativo. Contudo é importante esclarecer que o problema se põe únicamente no momento em que os agentes em causa fazem parte da Administração Pública, já não quando são parte integrante das empresas que os contratam.

Em primeiro lugar pode existir um problema quanto ao respeito pelo Princípio da Prossecução do Interesse Público. O art. 266.º/1 CRP diz que “ a Administração pública visa a prossecução do interesse público [...]”. A possível existência de um acordo prévio entre certas empresas e os que têm poderes para tomar decisões ou para as influenciar (ministros, secretários de estado etc..) pode afectar tanto o interesse público “primário” como os interesses públicos “secundários” (Cfr. ver a distincção de Rogério Soares, p. 36, do livro do Prof. Freitas do Amaral). Mas não só. Esta possível promiscuidade entre entidades privadas e agentes da AP pode redundar na prossecução de interesses privados em vez do interesse público. Tal situação constitui corrupção, e é susceptível de envolver sanções de vários tipos. Ligado a este primeiro ponto está também em causa o possível desvio quanto aos deveres da AP: poderá haver aqui também uma violação do dever de boa administração exigível aos seus órgãos e agentes. Assim, estaria em causa a adopção, em certos casos, das melhores soluções possíveis do ponto de vista técnico ou financeiro: a AP não estaria a prosseguir da forma mais eficiente o bem comum, estando em clara violação dos arts. 81.º, alínea c) CRP e 10.º CPA. Contudo é possivel contra-argumentar dizendo que o dever de boa administração não é aqui sustentável por força da sua reduzida relevância jurídica. Cremos, porém, que este argumento não procede, pois, embora sendo um “dever jurídico imperfeito” por não comportar sanção jurisdicional como diz o Prof. Freitas do Amaral, ele é ainda um dever jurídico existente, com algumas consequências jurídicas derivadas da sua violação (cfr. as três expressões jurídicas que assume este dever, p. 39). Tanto mais assim é, que foi deste dever que decorreram outros que hoje em dia se acham legal e constitucionalmente consagrados, como o Princípio da Proporcionalidade e da Imparcialidade.

Em segundo lugar, a verificação deste tipo de contratações pode por em causa o Princípio da Boa Fé, nas suas duas vertentes (Tutela da Confiança Legítima e Primazia da Materialidade Subjacente). A Boa Fé em geral vem estabelecida nos arts. 266.º/2 da CRP e 6-A.º/1 do CPA. Este, é o ponto essencial já que a Boa Fé foi legalmente consagrada porque possibilita a criação de “um clima de confiança e previsibilidade no seio da Administração Pública”, sem ela “nunca se poderá afirmar que o Estado é pessoa de bem”, sendo “uma condição sine qua non da própria credibilidade das instituições públicas”. Assim sendo poderá estar-se a violar a legítima confiança que todos nós depositamos na AP, segundo a qual esta actuará segundo aquilo que verdadeiramente é melhor para nós, prosseguindo o interesse público e não interesses particulares das empresas ou até interesses dos próprios agentes. Poderá também haver da Materialidade Subjacente, uma violação daquilo que realmente são os valores em jogo, sem que haja, no entanto, uma violação das disposições jurídicas.

Finalmente, e em último lugar, poderá estar também em jogo, o Princípio da Imparcialidade, já que este impõe que “os órgãos e agentes administrativos ajam de forma isenta e equidistante relativamente aos interesses em jogo nas situações que devem decidir”. Se já existe um acordo entre empresa e agente, estar-se-á a violar este princípio em geral, e a sua vertente positiva em particular pois não se estará a ponderar todos os interesses privados equacionáveis no caso (todas as empresas privadas dispostas a realizar uma determinada obra num concurso público, por exemplo). Contudo não haverá violação expressa da vertente negativa deste princípio já que não se estará em violação dos arts. 44.º a 51.º do CPA.

Existem, de facto, já algumas leis que regulam este tipo de situações, e últimamente, tem-se assitido na Assembleia, a alguns debates sobre o assunto. O problema é complicado e as soluções nem sempre parecem as mais acertadas. Contudo, uma coisa é certa: são necessárias medidas que, sem afectarem em demasia os direitos das pessoas e das empresas a trabalharem onde quiserem e a empregarem quem desejarem, permitam proteger a efectiva prossecução do interesse público pela AP.
Se o Simba encontrou, ao lado de Timon e Pumba, um lugar maravilhoso onde o lema era “Hakuna-Matata” (“os teus problemas são para esquecer”), não deixou de perceber que, para viver feliz, precisava de encarar os verdadeiros problemas e resolvê-los da melhor forma, razão pela qual regressou a casa, também nós não devemos ter receio de tentar encontrar as melhores soluções para estes casos, ainda que possam estar em causa, e infelizmente, interesses mais poderosos, do que o interesse público.

http://www.youtube.com/watch?v=5yPjv3GP5kI

quinta-feira, 27 de março de 2008

Pequena sugestão

Era só para pedir às pessoas que, no fim dos textos colocados no blogue, assinassem e escrevessem também o seu número. Visto que as nossas "alcunhas" virtuais podem por vezes enganar, assim garantimos a autenticidade de cada texto.

Martinho Lucas Pires, 140106060

segunda-feira, 24 de março de 2008

CASAMENTOS SOB MIRA DO FISCO


A direção geral de impostos exige aos noivos que prestem informações completas sobre o seu casamento, e admite penalizar quem colaborar com situações de fuga aos impostos. O fisco quer conhecer as empresas que prestaram os serviços, os custo envolvidos e as formas de pagamento. No fundo o fisco teme que a fraude lhe passe ao lado. São enviadas fichas aos recém casados para confirmar os seus gastos e quem não colabora será punido. Parece cómico mas em certos casos a administração fiscal exige saber quem pagou o vestido da noiva, quantos convidados havia na festa ou se havia outro casamento no mesmo dia ou no mesmo local.
Parece que esta noticia tem que ser alvo de um comentário nem que seja pela sua originalidade.
É extraodinario como a administração pretende fiscalizar a fuga ao fisco! Para além de se mostrar aqui o elevado desiquilibrio entre a administração fiscal e os contribuintes, o mais extraodinário é o facto como a administração fiscal faz dos noivos seus parceiros na "caça ao imposto". Há aqui um retorno claro a uma espécie de ditadura. "Saber quem comprou o vestido da noiva é violar a intimidade privada das pessoas garantida de forma constitucional(passa das marcas daquilo que a lei permite ao estado)". A fiscalização de um acto privado só pode ser explicado pelo desespero do estado em gerar receita.
Bastaria ao estado conceder benefícios fiscais em tudo o que comprassem e esta fiscalização absurda não seria necessária. Na Noruega tudo é dedutível de IRS. Seria um bom exemplo a seguir.
Por fim levanta-se uma pequena questão que é a de saber quem é competente para fazer este tipo de fiscalização. Que eu saiba esta matéria é da competência da administração, e não são os contribuintes que têm que andar a fazer "queixinhas" uns dos outros. Já estou como o outro " se não têm condições para proceder à fiscalização, arranjem. É para isso que pagamos impostos!"

quinta-feira, 20 de março de 2008

"Hospital Amadora-Sintra será entidade pública empresarial a partir de 2009"


O primeiro-ministro, José Sócrates, anunciou, ontem à tarde, na Assembleia da República que, a partir de 2009, o Hospital Amadora-Sintra, hoje entregue a gestão privada, passará, brevemente, a entidade pública empresarial (E.P.E.). Esta é mais uma das reformas do modo de agir da nossa Administração infra-estrutural, no sector da saúde, que vêm ocorrendo de há uns anos para cá e cujo expoente terá sido, em 2005, a passagem de 31 hospitais do país a entidades públicas empresariais. Defende o chefe do Executivo uma solução, a seu ver, mais eficaz: a gestão pública. As parcerias público-privadas como uma das formas de contratação pública, "são úteis para a construção; a gestão hospitalar, essa, deve permanecer pública", defende Sócrates.
Numa lógica separatista de construção privada (eventualmente) e gestão pública (ideal e necessariamente), o hospital até agora tido como paradigma a nível de gestão privada vê terminado, no final deste ano, o contrato de gestão privada (assinado em 1995 entre o Estado e a Sociedade Gestora, constituída por quatro entidades: a José de Mello Saúde, a Associação Nacional das Farmácias, a HLC e a Génèral de Santé) e passa, em 2009, a seguir o modelo E.P.E. (cujas implicações abordámos já na disciplina de Organização Administrativa), que se aplicou a vários hospitais e que, segundo Sócrates, "não significa nenhuma menorização de participação da iniciativa privada na organização e prestação de cuidados de saúde", configurando uma negação deste Executivo à possibilidade (utilizada por outros Governos, numa crítica subtil e implícita) "de abdicar da responsabilidade própria do Estado na gestão do SNS (Serviço Nacional de Saúde).
Este modelo de empresas continua a reger-se, também ele, em múltiplos aspectos, pelo direito privado (nomeadamente, Direito Comercial) , mas ficarão sujeitas a um regime de tutela, conforme previsto no Decreto-Lei 558/99, de 17 de Dezembro (artigo 29.º, v.g., a propósito da tutela económica e financeira, ainda que estas empresas não estejam sujeitas às normas da contabilidade pública).
O PS salienta a eficiência e os resultados positivos de uma "moderna gestão pública" resultante de reformas como a de 2005. Num sector particularmente melindroso, a mudança de gestão afigurou-se necessária para permitir "um maior controlo da Administração Central", já que se tem vindo a comentar algumas dificuldades de supervisão e controlo no modelo de gestão privada, especialmente num hospital que serve mais do que o dobro do número de utentes do que aquele para o qual foi criado.
Manuel Delgado, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), mostrou-se satisfeito com esta mudança.


A meu ver, estamos perante um sector "sensível" da nossa Administração Pública, que foi um dos principais consubstanciadores da época do "Welfare State" ou Estado Providência. É razoável que a mudança de Executivo e de orientação ideológica se traduza, esporadicamente, em algumas mudanças no que toca ao papel do Estado na intervenção e/ou regulação do SNS em Portugal, à semelhança do que ocorre noutros países. Contudo, perante um SNS burocratizado, lento e ineficaz, grosso modo, como o nosso, uma medida como esta não prejudica necessariamente os utentes...mas será que os beneficia? Ainda que se perceba que um Estado Pós-Social, como aquele em que vivemos, queira ainda chamar a si, pelo menos em grande parte do regime, a intervenção num sector crucial, para melhor contribuir para a prossecução do interesse público, será que esta medida contribui para a desburocratização de um sector que já neste Executivo mudou de responsável pela respectiva pasta? O intuito lucrativo de uma gestão privada não poderá contribuir, concomitantemente, para a satisfação de interesses egoístas e eficiência de prestação aos utentes, sendo esta decorrente daquele?
O artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa estatui uma norma programática de um direito à protecção e defesa da saúde, tendencialmente gratuito. É óbvio que, "tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos" não podemos ter um sistema de saúde privado in totum. Mas a tendencial homogeneização por parte deste Executivo também não resolve as dificuldades em relação aos utentes, destinatários últimos de toda a actuação administrativa. Estas mantêm-se, independentemente da titularidade da gestão.

Como já foi anteriormente referido, assistimos a manifestações várias de intervenção estatal. Na defesa, matéria tradicionalmente cara à soberania do Estado, assistimos à colaboração com os particulares (ainda que em matéria de construção); à constituição de uma multilateralidade de relações jurídicas num domínio classicamente egoísta e muito próprio . Na saúde, ainda que se siga a mesma orientação (binómio construção/gestão), temos agora um resquício de "retrocesso" à fuga para o direito privado"?


terça-feira, 18 de março de 2008

As pessoas colectivas públicas serão pessoas de bem?

Ao deparar-me com o primeiro caso prático de Direito Administrativo em que, uma câmara expropria um terreno a um particular, por razões de utilidade pública, declarando esse mesmo terreno como afecto à construção de um novo centro de saúde e vindo depois a vendê-lo por um preço bastante elevado, achei a referida situação dotada de uma elevada dose de realismo. Há que salientar a abundante jurisprudência incidente sobre a matéria. Uma pessoa colectiva pública, mormente um município, age através de um acto administrativo expropriando o particular ou celebrando um contrato de compra e venda em que declara que o bem vai ser afecto a um determinado fim, vindo depois a vendê-lo por um valor substancialmente superior e para fins diametralmente opostos (vide, por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Novembro de 1977). Nestes casos, os tribunais têm optado por aplicar o erro sobre a base do negócio, decisão que não me parece a mais adequada, se me é permitido o laivo jus-civilista.
Do ponto de vista do Direito Administrativo o que haverá a dizer, em particular em casos em que as pessoas colectivas públicas nem sequer contratam, agem com a arrogância de quem pode privar um particular provido de um direito constitucionalmente protegido, o direito de propriedade, declarando a expropriação por razões de utilidade pública e simulando a intenção de construir algo benéfico para a população? Se hoje, de iure condito, há um artigo que expressamente prevê o direito de reversão dos particulares contra todas as pessoas colectivas públicas nos arts. nº4 e nº5 do Código das Expropriações aprovado pela Lei nº1 168/99 (se bem que a reversão pode ser bastante morosa), no art. 7 nº1 do Código das Expropriações de 1976, se a entidade expropriante fosse de direito público, exceptuando as autarquias, não havia o referido direito, ou seja, o particular ficaria indefeso perante expropriações feitas por pessoas colectivas públicas (de salientar que a referida norma veio a ser declarada inconstitucional) Mais uma vez, perturbantes manifestações da infância traumática do direito administrativo. Aliás, diga-se que estes casos de expropriações são, regra geral, julgados por tribunais de foro privatístico...
O Estado e as autarquias são referidos como sendo “pessoas de bem”, os poderes de jus imperii que possuem só ao abrigo desta concepção podem ser justificados. As pessoas colectivas públicas num Estado de Direito têm como fim satisfazer as necessidades colectivas, contudo, tal não pode ser feito ao arrepio dos direitos individuais do cidadão. Em casos em que a câmara municipal expropria e depois revende o terreno por um preço bastante elevado poderia argumentar-se que o valor seria redistribuído pela população da autarquia. Mas, num direito administrativo que se quer “sentado no divã da Constituição”tal não pode ser admissível. O indivíduo é o fundamento último do Estado.

O estado do Estado

«Defesa recorre a parcerias privadas

A constituição de uma parceria público-privada é a solução encarada no Exército para construir Comando Superior.

O Ministério da Defesa prepara-se para recorrer a uma solução inédita de financiamento nas Forças Armadas: a constituição de uma parceria público-privada para construir uma das suas instalações, no caso, o complexo que deverá albergar o futuro Comando Superior do Exército (COSEX), na Amadora.
(…) A constituição da parceria permitirá angariar os fundos necessários para a construção do conjunto. Para tanto haverá que encontrar uma entidade privada que se encarregará da construção e eventual fornecimento de serviços ao complexo, a troco de uma renda anual, paga pelo ramo, durante um determinado número de anos, findos os quais a propriedade se transferirá para o Estado.»

- notícia do semanário Expresso, nº 1846, 15 de Março de 2008


Já que estamos numa de discutir as várias faces do prisma estatal, aqui está uma notícia que vem contrariar o lado do Estado alegadamente omnipresente e padecedor de gigantismo, invocado pelo Luís. Qual «polvo de mil tentáculos» (nas palavras de Norberto Bobbio), o Estado resolveu conceder a particulares a possibilidade de construir o complexo de estruturas superiores do Exército, numa solução na onda de outras já adoptadas no domínio da Saúde, Obras Públicas e Transportes.
A meu ver, esta é uma decisão que deixa transparecer o actual Estado pós-social em que vivemos – que começou a ganhar forma na década de 70, face à falência do modelo do Estado social – e que se traduz numa Administração Pública prospectiva, que se relaciona intensamente com os particulares; particulares esses que deixam de ser meros destinatários da actuação da Administração, para assumir um novo papel no relacionamento com esta, como prova a notícia.
Como o Martinho salientou, o Estado despe-se das suas vestes de prestador directo para envergar as de regulador, deixando de querer controlar todas as fases da prestação de serviços e preferindo criar condições para que esta se efective, muitas vezes através de parcerias público-privadas (sintoma, também, da «fuga para o Direito Privado», destacada pela Professora Maria João Estorninho). As relações jurídico-administrativas tornam-se, assim, multilaterais, visto que os seus efeitos atingem uma panóplia de sujeitos. Esta rede de relações entre entidades públicas e privadas está também intimamente associada a duas outras características da Administração infra-estrutural que saem realçadas com a notícia acima transcrita: o alargamento da protecção jurídica de terceiros (das empresas concorrentes, eventualmente) e a durabilidade das relações administrativas com os particulares (que se prolongam no tempo, estruturadas por fases – como está expresso no último parágrafo da notícia – não se resumindo a um momento efémero).

Face a duas notícias e a duas manifestações tão distintas da intervenção estadual, em que Estado é que ficamos? Qual é, afinal, o estado do Estado?

sexta-feira, 14 de março de 2008














Uma pequena graçola para assinalar o fim do estudo do primeiro capítulo do nosso programa: «Psicopatologia da Vida Quotidiana» do Direito Administrativo.
Depois de deitarmos o Direito Administrativo no divã da História, da Constituição e da Europa, aqui o temos no lendário divã de Sigmund Freud!

O Grande Irmão


Foi hoje entregue, no Parlamento, um projecto de lei que regula o funcionamento dos estabelecimentos que fazem tatuagens e aplicam piercings, passando a ser proibido, por exemplo, o seu uso na língua.
Sem prejuízo da essência deste projecto configurar diversos problemas no plano do Direito Constitucional, designadamente se confrontado com o direito à reserva da intimidade da vida privada consagrado no artigo 26.º da nossa Lei Fundamental, a notícia sugeriu-me uma pergunta acerca da natureza do papel e dos fins do Estado.
Detendo-me estritamente no plano dos princípios, pensei que este projecto nos deve merecer uma reflexão sobre o conceito de interesses colectivos. Bem sei que não cabe à Administração regular esta matéria, mas caber-lhe-à, depois de introduzida a disciplina legal, executá-la e aplicá-la.
Nesse sentido, a ideia de definir as condições de higiene e segurança em que tais operações se fazem não me repugna; porém, a proibição definitiva e categórica a que se pretende dar valor de lei não infringe em grau demasiado violento a esfera individual das pessoas? É este o modelo de Estado que queremos, isto é, uma espécie de Pai ou entidade omnipresente à maneira do Big Brother do «1984» de George Orwell?
De facto, apesar da notícia não me ter despertado qualquer problema jurídico-administrativo em concreto (até por força do estado ainda embrionário do estudo do Direito Administrativo em que nos encontramos), não deixou de me interpelar quanto à filosofia que preside à proposta feita pelos deputados do PS, os mesmos que, na sua maioria, defenderam, não há muito tempo, e curiosamente à luz de um mesmo princípio de liberdade individual, a ideia de enxertar na nossa Ordem Jurídica uma espécie de direito de cariz potestativo da mulher a abortar. Não estaremos perante uma flagrante contradição do Estado de Direito?

quinta-feira, 13 de março de 2008

Do Direito Administrativo Europeu

Do Direito Administrativo Europeu

No “Público” de ontem, dia 12 de Março, José Manuel Durão Barroso (Presidente da Comissão Europeia) e Meglena Kuneva (Comissária da Protecção do Consumidor) escrevem sobre a linha de acção da União e sobre as medidas que estão a ser tomadas no que toca à defesa do consumidor. Este pequeno - mas muito diversificado - artigo denominado “Consumidores mais fortes numa Europa mais próspera” deixa antever vários temas aliciantes de Direito Administrativo que passaremos a expôr.

O primeiro detalhe que nos chama à atenção é, curiosamente, a própria denominação do cargo da co-autora em causa (Comissária da Protecção do Consumidor?!). Este detalhe mostra bem que com a actual situação de União a 27, a correspondente obrigação de haver um comissário de cada nacionalidade, decorrente do art. 211.º do TCE, não é sustentável. Equivaleria a ter em Portugal 27 ministros, um dos quais uma ministra com o mesmo cargo, situação passível de causar tanto espanto como o do então Sr. Ministro Paulo Portas aquando da atribuição da sua pasta (que misturava “Defesa” e “Assuntos do Mar”) na tomada de posse do Governo de Santana Lopes. Mas este não é o lugar para discutir tal dilema de Direito da União Europeia. Derivando o raciocínio agora para a materia de Direito Administrativo, o que é de notar é o seguinte: depois de se ter assistido a um esforço dos Estados europeus para diminuir o peso da máquina administrativa, não será este um exemplo de que se está a caminhar no caminho exactamente oposto, agora a nível comunitário?

O segundo ponto digno de exposição é o da existência de uma verdadeira e própria Administração de tipo Infra-Estrutural a nível europeu. De facto tal constatação não é de estranhar, sobretudo para um aluno que tenha bem presente a evolução histórica das formas de Estado e que tenha a “psicanálise” do Direito Administrativo em dia. Se a União Europeia é o reflexo da comunhão das políticas dos vários Estados Membros que a compõem, e se a implementação desta forma de Estado é a que está hoje maioritáriamente “em vigor” em cada Estado, então não há surpresa nenhuma ao constatar que a U.E. segue, ou pretende seguir, os mesmos moldes. Ao ler o artigo percebemos que o papel da U.E. não é o de prestar directamente bens e serviços, mas sim estabelecer-se na posição de regulador e lançar as bases necessárias para o desenvolvimento das sociedades europeias, deixando um espaço muito amplo à actuação das entidades privadas: “Recentemente, a Comissão Europeia lançou regulamentação destinada a reduzir os custos do roaming. As Chamadas feitas no estrangeiro a partir de telefones móveis baixaram para níveis proporcionais aos seus custos reais. [...] Estamos a trabalhar activamente para ultrapassar o problema das práticas desleais na fixação de preços e na venda electrónica de bilhetes de avião.” lê-se. E mais adiante é dito que “ se tais instrumentos não funcionarem, não deixaremos de propor legislação”.

O terceiro ponto de interesse está intrínsecamente relacionado com o anterior. A legislação desenvolvida pelas instituições comunitárias vai dar origem ao nascimento de relações jurídicas, de entre as quais se poderá evidenciar relações jurídicas administrativas, relações essas que não são apenas bilaterais mas sim multilaterais. Passa-se a explicar. A Comissão ao legislar estará eventualmente a atribuir directamente direitos aos cidadãos europeus, mas pode estar apenas a proibir certas práticas pela parte das empresas (no caso do roaming, dizer expressamente que os consumidores têm direito a preços baixos, ou então proibir as empresas prestadoras desse serviço de estabelecerem preços exorbitantes). Qual a diferença? Ao nível dos direitos subjectivos, nenhuma. É de notar que neste ponto, mais uma vez, cabe referência ao que foi dito nas aulas do Professor. Paralelamente ao que foi exposto acerca das várias teorias do direito subjectivo, quando se falou dos Particulares sujeitos de Direito Administrativo “todos iguais, todos diferentes”, e adoptando a “Teoria da Norma de Protecção”, podemos afirmar que não só se verifica aqui que “a medida da vinculação corresponde à medida de direitos” mas também que “a medida dos direitos corresponde à medida da vinculação”. Não há lugar para a “Teoria do Direito Reflexo” porque “eu”, cidadão português e consequentemente cidadão europeu, tenho O direito a preços baixos não só porque me foi expressamente concedido, mas também porque foram proibidos os preços altos. Como se vê o direito não existe somente quando “eu” o invocar em juizo, mas também, e sobretudo, porque ele foi consagrado em “meu” favor não sendo tolerada a sua violação: estamos a falar de um momento que é anterior: ao falar do reforço dos poderes dos consumidores, Durão Barroso afirma que estes “merecem ter preços transparentes e competitivos. Merecem informações claras e uma protecção rigorosa contra bens defeituosos e/ou perigosos”. A referência não podia ser mais nítida. Concluindo, e tentando não perder o fio da ideia, as relações jurídicas que se criam dizem-se multilaterias uma vez que os direitos em causa não são apenas concedidos pela Administração a um particular, mas a todos eles: os consumidores europeus são a “multiplicidade” dos sujeitos administrativos, o acto administrativo europeu tem eficácia múltipla, produzindo os seus efeitos perante todos. Mais. Será que estamos perante um elemento da chamada “Revolução Coperniciana” do Professor Vasco P. Silva? Estamos perante a consagração do verdadeiro “Sol” da União (os particulares)?

O quarto ponto tem que ver com o impacto provocado por esses direitos. A sua existência tem uma consequência bem mais importante do que a simples e evidente protecção dos particulares. O Direito do Consumidor ou o Direito ao Ambiente (também referenciado no artigo), por exemplo, derivam de políticas europeias comuns, políticas essas que correspondem no fundo à consagração de verdadeiros direitos fundamentais dos cidadãos, invocáveis perante as Administrações de cada Estado Membro e perante as Instituições Europeias. Os cidadãos europeus são de facto sujeitos de direito no quadro comunitário. Mais do que isso. Vemos por este artigo que as políticas em causa são políticas públicas administrativas: a União é, como diz o Professor, “uma comunidade de direito administrativo”. Juntando tudo isto ao facto de na União existir divisão de poderes, porque é que não se poderá afirmar que existe um verdadeiro Direito Constitucional Europeu? Parece que afinal o Professor Lucas Pires tinha razão...

Finalmente, o quinto ,e último, ponto é uma decorrência directa da anterior ideia. Se o Direito Constitucional consiste, no fundo, no elenco dos princípios, estes não podem ficar sem algo que lhes dê efectividade, sob pena de não vigorarem. Ora, esse é o papel do Direito Administrativo: ele é a concretização dos princípios constituicionais. Existe uma interdependência entre um e outro, este não “vive” sem o outro, e vice-versa. Assim, visto não vermos oposição à ideia de Constitucionalismo Europeu, não vemos porque seria de rejeitar a ideia de um verdadeiro Direito Administrativo Europeu.

Convido todos os que queiram ler o artigo a consultarem o referido jornal. E todos aqueles que tenham paciência, a comentarem o que foi aqui escrito.

O Direito Administrativo teve uma "infância difícil" e isso deixa "traumas" como sabemos. A Revolução Francesa marca, em grande medida, o nascimento do Direito Administrativo. O modelo francês proclamou a separação de poderes mas não em todas as suas dimensões, na medida em que atribuiu privilégios exorbitantes à Administração, não podendo esta ser perturbada pelo controlo dos tribunais. O modelo anglo-saxónico, pelo contrário, proclamou de facto a separação de poderes e, como tal, a Administração podia, e devia, ser controlada pelo poder judicial.
O filme fez-me reflectir sobre vários aspectos e questionar determinadas realidades: militares que cometeram crimes mas que não seriam julgados como cidadãos comuns, superiores a encobrir uma situação porque fazer justiça envolveria o conhecimento de verdades demasiado dolorosas para um Estado em desespero... "Quem não tem a psicanálise em dia" encarará estes problemas como meras realidades existentes. O problema é, porém, bem mais profundo. Não reflectirá ele marcas de uma Administração que tinha ou tem privilégios exorbitantes? Não estaremos perante uma situação semelhante?Militares, súbditos, superiores hierárquicos capazes de se julgar a si próprios? Em que termos se poderá falar de justiça? A corrupção evidente ao longo do filme e que perturbou a investigação de Emily Sanders (Charlize Theron) e Hank (Tommy Lee Jones) não deixa margem para dúvidas. Mas, ainda que haja, nada melhor que ver (ou rever) a parte final do filme que fala por si.