terça-feira, 18 de março de 2008

As pessoas colectivas públicas serão pessoas de bem?

Ao deparar-me com o primeiro caso prático de Direito Administrativo em que, uma câmara expropria um terreno a um particular, por razões de utilidade pública, declarando esse mesmo terreno como afecto à construção de um novo centro de saúde e vindo depois a vendê-lo por um preço bastante elevado, achei a referida situação dotada de uma elevada dose de realismo. Há que salientar a abundante jurisprudência incidente sobre a matéria. Uma pessoa colectiva pública, mormente um município, age através de um acto administrativo expropriando o particular ou celebrando um contrato de compra e venda em que declara que o bem vai ser afecto a um determinado fim, vindo depois a vendê-lo por um valor substancialmente superior e para fins diametralmente opostos (vide, por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Novembro de 1977). Nestes casos, os tribunais têm optado por aplicar o erro sobre a base do negócio, decisão que não me parece a mais adequada, se me é permitido o laivo jus-civilista.
Do ponto de vista do Direito Administrativo o que haverá a dizer, em particular em casos em que as pessoas colectivas públicas nem sequer contratam, agem com a arrogância de quem pode privar um particular provido de um direito constitucionalmente protegido, o direito de propriedade, declarando a expropriação por razões de utilidade pública e simulando a intenção de construir algo benéfico para a população? Se hoje, de iure condito, há um artigo que expressamente prevê o direito de reversão dos particulares contra todas as pessoas colectivas públicas nos arts. nº4 e nº5 do Código das Expropriações aprovado pela Lei nº1 168/99 (se bem que a reversão pode ser bastante morosa), no art. 7 nº1 do Código das Expropriações de 1976, se a entidade expropriante fosse de direito público, exceptuando as autarquias, não havia o referido direito, ou seja, o particular ficaria indefeso perante expropriações feitas por pessoas colectivas públicas (de salientar que a referida norma veio a ser declarada inconstitucional) Mais uma vez, perturbantes manifestações da infância traumática do direito administrativo. Aliás, diga-se que estes casos de expropriações são, regra geral, julgados por tribunais de foro privatístico...
O Estado e as autarquias são referidos como sendo “pessoas de bem”, os poderes de jus imperii que possuem só ao abrigo desta concepção podem ser justificados. As pessoas colectivas públicas num Estado de Direito têm como fim satisfazer as necessidades colectivas, contudo, tal não pode ser feito ao arrepio dos direitos individuais do cidadão. Em casos em que a câmara municipal expropria e depois revende o terreno por um preço bastante elevado poderia argumentar-se que o valor seria redistribuído pela população da autarquia. Mas, num direito administrativo que se quer “sentado no divã da Constituição”tal não pode ser admissível. O indivíduo é o fundamento último do Estado.

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