terça-feira, 18 de março de 2008

O estado do Estado

«Defesa recorre a parcerias privadas

A constituição de uma parceria público-privada é a solução encarada no Exército para construir Comando Superior.

O Ministério da Defesa prepara-se para recorrer a uma solução inédita de financiamento nas Forças Armadas: a constituição de uma parceria público-privada para construir uma das suas instalações, no caso, o complexo que deverá albergar o futuro Comando Superior do Exército (COSEX), na Amadora.
(…) A constituição da parceria permitirá angariar os fundos necessários para a construção do conjunto. Para tanto haverá que encontrar uma entidade privada que se encarregará da construção e eventual fornecimento de serviços ao complexo, a troco de uma renda anual, paga pelo ramo, durante um determinado número de anos, findos os quais a propriedade se transferirá para o Estado.»

- notícia do semanário Expresso, nº 1846, 15 de Março de 2008


Já que estamos numa de discutir as várias faces do prisma estatal, aqui está uma notícia que vem contrariar o lado do Estado alegadamente omnipresente e padecedor de gigantismo, invocado pelo Luís. Qual «polvo de mil tentáculos» (nas palavras de Norberto Bobbio), o Estado resolveu conceder a particulares a possibilidade de construir o complexo de estruturas superiores do Exército, numa solução na onda de outras já adoptadas no domínio da Saúde, Obras Públicas e Transportes.
A meu ver, esta é uma decisão que deixa transparecer o actual Estado pós-social em que vivemos – que começou a ganhar forma na década de 70, face à falência do modelo do Estado social – e que se traduz numa Administração Pública prospectiva, que se relaciona intensamente com os particulares; particulares esses que deixam de ser meros destinatários da actuação da Administração, para assumir um novo papel no relacionamento com esta, como prova a notícia.
Como o Martinho salientou, o Estado despe-se das suas vestes de prestador directo para envergar as de regulador, deixando de querer controlar todas as fases da prestação de serviços e preferindo criar condições para que esta se efective, muitas vezes através de parcerias público-privadas (sintoma, também, da «fuga para o Direito Privado», destacada pela Professora Maria João Estorninho). As relações jurídico-administrativas tornam-se, assim, multilaterais, visto que os seus efeitos atingem uma panóplia de sujeitos. Esta rede de relações entre entidades públicas e privadas está também intimamente associada a duas outras características da Administração infra-estrutural que saem realçadas com a notícia acima transcrita: o alargamento da protecção jurídica de terceiros (das empresas concorrentes, eventualmente) e a durabilidade das relações administrativas com os particulares (que se prolongam no tempo, estruturadas por fases – como está expresso no último parágrafo da notícia – não se resumindo a um momento efémero).

Face a duas notícias e a duas manifestações tão distintas da intervenção estadual, em que Estado é que ficamos? Qual é, afinal, o estado do Estado?

2 comentários:

Luís Froes disse...

O que me parece - e isso é que me levanta alguma perplexidade -
é que existem dois movimentos inversos: por um lado, o da «liberalização» (mediante a crescente intervernção de sectores privados) da prossecução de certos fins estaduais, aqui em particular o da Defesa Nacional, curiosamente um fim tradicional do Estado, que não nasceu apenas à luz do quadro do «Welfare State»; e, por outro, o progressivo «paternalismo» estadual em matéria de costumes (veja-se o caso da lei do tabaco, cujo radicalismo e histeria, manifesto no tratamento dos fumadores como seres estranhos e socialmente incómodos, impede a ponderação de dois valores essenciais: o da saúde pública e o da liberdade individual; veja-se, agora, o caso dos «piercings», em que se invade de forma violenta a esfera privada das pessoas).

No entanto, admito que se possa encarar este último aspecto, designadamente o que respeita ao recente projecto socialista, como integrado no campo do jogo político puro e duro. De facto, não será uma brilhante jogada política que uma bancada parlamentar que defendeu recentemente a liberalização do aborto e que, atrevo-me a prevê-lo, não tardará a propôr legislação que admita o «casamento» entre pessoas do mesmo género, a que se somarão outros projectos filhos das más - e não boas - práticas europeias, venha agora, numa espécie de piscar de olhos à classe média tradicional, receosa de tamanhos «avanços» civilizacionais, descansar o pai conservador?
Bem sei que estamos fora do plano jurídico, mas, em termos pragmáticos, direi que não haverá, provavelmente, apenas e tão-só uma reflexão acerca do papel do Estado na base da proposta dos deputados do PS.

Tito Rendas disse...

Como bem disseste, essas observações não se prendem com o plano jurídico. A minha intenção não era, de modo algum, derivar a discussão para o domínio político-ideológico, até porque este não é o espaço certo para tal. Parece-me claro que por trás das opções de cada Governo não está somente «uma reflexão acerca do papel do Estado»; cada Executivo actua consoante os seus ideais e adopta medidas de um lado ou de outro do espectro político, tentando lidar e jogar com as expectativas da população. Nada de novo aí.
Mas o problema não passa por avaliar essas opções do Governo. A minha questão era se, face a medidas tão díspares, podemos realmente compartimentar a actuação do Estado de modo a caracterizá-lo rigidamente em cada época. Será o papel do Estado classificável a esse ponto? Ou isso varia de país para país consoante a realidade socio-económica que se vive?