quinta-feira, 13 de março de 2008

Do Direito Administrativo Europeu

Do Direito Administrativo Europeu

No “Público” de ontem, dia 12 de Março, José Manuel Durão Barroso (Presidente da Comissão Europeia) e Meglena Kuneva (Comissária da Protecção do Consumidor) escrevem sobre a linha de acção da União e sobre as medidas que estão a ser tomadas no que toca à defesa do consumidor. Este pequeno - mas muito diversificado - artigo denominado “Consumidores mais fortes numa Europa mais próspera” deixa antever vários temas aliciantes de Direito Administrativo que passaremos a expôr.

O primeiro detalhe que nos chama à atenção é, curiosamente, a própria denominação do cargo da co-autora em causa (Comissária da Protecção do Consumidor?!). Este detalhe mostra bem que com a actual situação de União a 27, a correspondente obrigação de haver um comissário de cada nacionalidade, decorrente do art. 211.º do TCE, não é sustentável. Equivaleria a ter em Portugal 27 ministros, um dos quais uma ministra com o mesmo cargo, situação passível de causar tanto espanto como o do então Sr. Ministro Paulo Portas aquando da atribuição da sua pasta (que misturava “Defesa” e “Assuntos do Mar”) na tomada de posse do Governo de Santana Lopes. Mas este não é o lugar para discutir tal dilema de Direito da União Europeia. Derivando o raciocínio agora para a materia de Direito Administrativo, o que é de notar é o seguinte: depois de se ter assistido a um esforço dos Estados europeus para diminuir o peso da máquina administrativa, não será este um exemplo de que se está a caminhar no caminho exactamente oposto, agora a nível comunitário?

O segundo ponto digno de exposição é o da existência de uma verdadeira e própria Administração de tipo Infra-Estrutural a nível europeu. De facto tal constatação não é de estranhar, sobretudo para um aluno que tenha bem presente a evolução histórica das formas de Estado e que tenha a “psicanálise” do Direito Administrativo em dia. Se a União Europeia é o reflexo da comunhão das políticas dos vários Estados Membros que a compõem, e se a implementação desta forma de Estado é a que está hoje maioritáriamente “em vigor” em cada Estado, então não há surpresa nenhuma ao constatar que a U.E. segue, ou pretende seguir, os mesmos moldes. Ao ler o artigo percebemos que o papel da U.E. não é o de prestar directamente bens e serviços, mas sim estabelecer-se na posição de regulador e lançar as bases necessárias para o desenvolvimento das sociedades europeias, deixando um espaço muito amplo à actuação das entidades privadas: “Recentemente, a Comissão Europeia lançou regulamentação destinada a reduzir os custos do roaming. As Chamadas feitas no estrangeiro a partir de telefones móveis baixaram para níveis proporcionais aos seus custos reais. [...] Estamos a trabalhar activamente para ultrapassar o problema das práticas desleais na fixação de preços e na venda electrónica de bilhetes de avião.” lê-se. E mais adiante é dito que “ se tais instrumentos não funcionarem, não deixaremos de propor legislação”.

O terceiro ponto de interesse está intrínsecamente relacionado com o anterior. A legislação desenvolvida pelas instituições comunitárias vai dar origem ao nascimento de relações jurídicas, de entre as quais se poderá evidenciar relações jurídicas administrativas, relações essas que não são apenas bilaterais mas sim multilaterais. Passa-se a explicar. A Comissão ao legislar estará eventualmente a atribuir directamente direitos aos cidadãos europeus, mas pode estar apenas a proibir certas práticas pela parte das empresas (no caso do roaming, dizer expressamente que os consumidores têm direito a preços baixos, ou então proibir as empresas prestadoras desse serviço de estabelecerem preços exorbitantes). Qual a diferença? Ao nível dos direitos subjectivos, nenhuma. É de notar que neste ponto, mais uma vez, cabe referência ao que foi dito nas aulas do Professor. Paralelamente ao que foi exposto acerca das várias teorias do direito subjectivo, quando se falou dos Particulares sujeitos de Direito Administrativo “todos iguais, todos diferentes”, e adoptando a “Teoria da Norma de Protecção”, podemos afirmar que não só se verifica aqui que “a medida da vinculação corresponde à medida de direitos” mas também que “a medida dos direitos corresponde à medida da vinculação”. Não há lugar para a “Teoria do Direito Reflexo” porque “eu”, cidadão português e consequentemente cidadão europeu, tenho O direito a preços baixos não só porque me foi expressamente concedido, mas também porque foram proibidos os preços altos. Como se vê o direito não existe somente quando “eu” o invocar em juizo, mas também, e sobretudo, porque ele foi consagrado em “meu” favor não sendo tolerada a sua violação: estamos a falar de um momento que é anterior: ao falar do reforço dos poderes dos consumidores, Durão Barroso afirma que estes “merecem ter preços transparentes e competitivos. Merecem informações claras e uma protecção rigorosa contra bens defeituosos e/ou perigosos”. A referência não podia ser mais nítida. Concluindo, e tentando não perder o fio da ideia, as relações jurídicas que se criam dizem-se multilaterias uma vez que os direitos em causa não são apenas concedidos pela Administração a um particular, mas a todos eles: os consumidores europeus são a “multiplicidade” dos sujeitos administrativos, o acto administrativo europeu tem eficácia múltipla, produzindo os seus efeitos perante todos. Mais. Será que estamos perante um elemento da chamada “Revolução Coperniciana” do Professor Vasco P. Silva? Estamos perante a consagração do verdadeiro “Sol” da União (os particulares)?

O quarto ponto tem que ver com o impacto provocado por esses direitos. A sua existência tem uma consequência bem mais importante do que a simples e evidente protecção dos particulares. O Direito do Consumidor ou o Direito ao Ambiente (também referenciado no artigo), por exemplo, derivam de políticas europeias comuns, políticas essas que correspondem no fundo à consagração de verdadeiros direitos fundamentais dos cidadãos, invocáveis perante as Administrações de cada Estado Membro e perante as Instituições Europeias. Os cidadãos europeus são de facto sujeitos de direito no quadro comunitário. Mais do que isso. Vemos por este artigo que as políticas em causa são políticas públicas administrativas: a União é, como diz o Professor, “uma comunidade de direito administrativo”. Juntando tudo isto ao facto de na União existir divisão de poderes, porque é que não se poderá afirmar que existe um verdadeiro Direito Constitucional Europeu? Parece que afinal o Professor Lucas Pires tinha razão...

Finalmente, o quinto ,e último, ponto é uma decorrência directa da anterior ideia. Se o Direito Constitucional consiste, no fundo, no elenco dos princípios, estes não podem ficar sem algo que lhes dê efectividade, sob pena de não vigorarem. Ora, esse é o papel do Direito Administrativo: ele é a concretização dos princípios constituicionais. Existe uma interdependência entre um e outro, este não “vive” sem o outro, e vice-versa. Assim, visto não vermos oposição à ideia de Constitucionalismo Europeu, não vemos porque seria de rejeitar a ideia de um verdadeiro Direito Administrativo Europeu.

Convido todos os que queiram ler o artigo a consultarem o referido jornal. E todos aqueles que tenham paciência, a comentarem o que foi aqui escrito.

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