sexta-feira, 14 de março de 2008

O Grande Irmão


Foi hoje entregue, no Parlamento, um projecto de lei que regula o funcionamento dos estabelecimentos que fazem tatuagens e aplicam piercings, passando a ser proibido, por exemplo, o seu uso na língua.
Sem prejuízo da essência deste projecto configurar diversos problemas no plano do Direito Constitucional, designadamente se confrontado com o direito à reserva da intimidade da vida privada consagrado no artigo 26.º da nossa Lei Fundamental, a notícia sugeriu-me uma pergunta acerca da natureza do papel e dos fins do Estado.
Detendo-me estritamente no plano dos princípios, pensei que este projecto nos deve merecer uma reflexão sobre o conceito de interesses colectivos. Bem sei que não cabe à Administração regular esta matéria, mas caber-lhe-à, depois de introduzida a disciplina legal, executá-la e aplicá-la.
Nesse sentido, a ideia de definir as condições de higiene e segurança em que tais operações se fazem não me repugna; porém, a proibição definitiva e categórica a que se pretende dar valor de lei não infringe em grau demasiado violento a esfera individual das pessoas? É este o modelo de Estado que queremos, isto é, uma espécie de Pai ou entidade omnipresente à maneira do Big Brother do «1984» de George Orwell?
De facto, apesar da notícia não me ter despertado qualquer problema jurídico-administrativo em concreto (até por força do estado ainda embrionário do estudo do Direito Administrativo em que nos encontramos), não deixou de me interpelar quanto à filosofia que preside à proposta feita pelos deputados do PS, os mesmos que, na sua maioria, defenderam, não há muito tempo, e curiosamente à luz de um mesmo princípio de liberdade individual, a ideia de enxertar na nossa Ordem Jurídica uma espécie de direito de cariz potestativo da mulher a abortar. Não estaremos perante uma flagrante contradição do Estado de Direito?

3 comentários:

Martinho Lucas Pires disse...

Lendo as razões da lei, parece-me que o objectivo "saúde pública" até é bem defendido. De facto regular — e aí está o Estado pós-social ao seu alto nível — a área de "decoração corporal" (peço desculpa pela definição, mas o dia já vai longo), tendo em conta a quantidade de pessoas que hoje em dia usufrui desses serviços, é essencial. Numa sociedade em que a diferença é uma marca, em que até a ausência de estilo é uma forma de estilo, e que muitas vezes o diferenciarmo-nos passa por arranjos no nosso corpo, é de aplaudir a atenção do legislador. Todo o cuidado é pouco.
No entanto, não sei até que ponto esse cuidado não será excessivo, e demasiado intervencionista. Os piercings na língua afectarão assim tanto a saúde como o tabaco, ou outras coisas? Parece-me um passo demasiado longo do Estado.

Ana Rocheteau disse...

Devo confessar que parte do projecto lei me parece de aplaudir. De facto, creio ser benéfica a proibição de tatuagens em menores de 18 anos e também me parece uma medida salutar a maior regulação dos estabelecimentos onde se pratica este tipo de "arte". Até porque estão inerentes, como já referido, razões de saúde pública. Mais, precisamente uma das funções do Estado é zelar por essa saúde pública, essencial, para o bem estar colectivo. Já a proibição de piercings em algumas zonas do corpo me parece abusiva... contudo, confesso, não estar suficientemente informada sobre os "perigos para a saúde" que poderão ou não advir de piercings nessas zonas...
Por outro lado, por vezes, a saúde pública acaba inevitavelmente por colidir com alguas liberdades individuais. Exemplificando, poderá dizer-se que o uso obrigatório de cintos de segurança colide com a liberdade individual do condutor, mas, ninguém contestará que se trata de uma medida benéfica e necessária face às mortes na estrada.
Sem querer entrar em "politiquices" já ao projecto de lei referido sobre a interrupção voluntária da gravidez, concorde-se ou não com lei, não estava inerente este confronto, porque foram razões de saúde pública (número de mulheres que abortavam sem quaisquer condições) que o motivaram também.
Não sou, de modo algum, apologista de um Estado como a Coreia do Norte com um "grande irmão" sempre a vigiar os passos dos cidadãos. Contudo, também não se pode pretender um Estado dickensiano que em nada intervém... e num sistema como o nosso em que o acesso à saúde é "tendencialmente gratuito" não será de atribuir ao Estado, prestador de serviços de saúde, poderes de ficalização?

Martinho Lucas Pires disse...

Uma pequena nota: enquanto falamos aqui sobre o Estado como demasiado intervencionista, como "Grande Irmão" (demonstrando uma perspectiva jurídica mas ao mesmo tempo sociológica), utilizando o seu "ius imperii" para actuar na sociedade, uma notícia de rodapé do telejornal mostra-me outra face. A CIP vai passar a pedir juros ao Estado, como faz a outras empresas. O Estado cada vez "igual" aos outros, ao mesmo nível no ringue. Engraçado.